26 de agosto de 2006

Fim de Caso

Fim de Caso



Ele guardava os meus versos,
como se fossem as chaves que o levariam até mim.

Para ele, eram como respostas dos meus mistérios,
do meu silêncio, dos meus porquês,
da ausência dos meus beijos.

Na falta de minha pele,
onde pudesse repousar e aquecer as mãos,
acostumou-se a tatear a textura dos meus papéis
e assim acalmar seus desejos.

Deleitava-se com isso.
Era mais segura, essa forma de relacionamento.

Transformou-se num leitor voraz dos meus escritos.
Versos, cartas, lembretes em papel de embrulho,
cadernetas, lista de compras, rascunhos de um artigo
agendas, resumos descompromissados,
dedicatória em um livro.
Vindo de mim, não tinha muito critério.


Consumia-me por papéis, meio que como um vício.
“Como foi o seu dia, meu amor?”,
perguntava, sozinho, enquanto se deliciava
deitado, olhos fechados ...
com meus escritos cobrindo-lhe “as vergonhas”.

Dos pedaços de papel, testemunhas do meu sentimento
buscava extrair a leitura do meu silêncio.
A peça que faltava, a lacuna, o sentido...
Assim acreditava construir
a segurança de que carecia para si.
Nos meus escritos
dosava o quanto em minha vida teria espaço,
caso fosse mais arrojado e olhasse em meus olhos.

Torcia para que as minhas mãos,
antes de se dedicarem aos escritos,
tivessem se destinado ao passeio, ainda que breve,
pelas minhas formas.
Tateava o papel com ânsia e atiçava as narinas
buscando ali algum resto de mim,
algum segredo de carne,
que pudessem lhe acalmar a porção selvagem.
Dia desses usou a língua.
Mas foi cuidadoso; somente pelas bordas,
para não tornar ilegível
e nem imprestável o escrito que continha.

Pelas minhas folhas, aprendeu a saber dos meus passos.
Pelo meu contato com o papel e a caneta,
já sabia do meu estado de espírito
e do movimento do meu dia.

E eu tinha uma escrita solitária, ardida...
Isso era triste, mas lhe acalmava,
pois assim me imaginava só sua...

Aí veio a era da informática,
Teclados, monitores, editores de texto, blogs...
Rendi-me à ciência.
A partir daí,
nunca mais ele teve em suas mãos o meu mapa
na língua que tão bem entendia.
Em agonia, ia a internet
e lia os meus escritos repetidas vezes,
mas não mais me sabia.
Foi então que entendeu
que pouco lhe importava o teor da escrita.
Sua linguagem era outra, a da tez das mãos
a do cheiro, a do sabor, a da textura dos papéis.

Se dizia homem decidido
e não admitiu em sua vida sentimental
a inércia e a frieza do teclado.
Sem pensar duas vezes, deu fim ao relacionamento,
e passou a maldizer o progresso, a ciência e a tecnologia.

2 Comentários:

Anônimo disse...

Talvez quem leia meu sobrenome, possa imaginar que somos irmãos e por isto dedico-lhes os elogios. Pobre pensar, basta ler e se deixar envolver pela imagem do admirador dos escritos e ver a beleza do poema, Onde estou tendo acesso a tais belezas? Pela internet, e já que não o sou o leitor ávido de seus escritos em papéis, digo: Viva a Tecnologia. Parabéns! Publique mais.

Rita Mendonça disse...

Ainda que, tecnologicamente, fique sempre perto...

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