14 de outubro de 2006

A contadora de histórias tristes

Descrição da imagem: em fundo escuro, se destacam três flores brancas de cinco pétalas cada.  
O centro das flores é amarelo.


A contadora de histórias tristes


Minha fé diz que serei a última a ir embora
da grande festa da vida.

Sei que a vida me reservou lugar de honra,
camarote confortável, visibilidade em ato de cortesia
e a certeza de que os espetáculos
só inicia com a minha chegada.

Pois que comecem. Aqui estou!
Inicie-se o rosário de dores. As minhas!
E deleitem-se os que me têm antipatia.

Cruzou-me a missão de registrar os acontecimentos.
Narrar em papel umedecido de lágrimas e sangue
os eventos que me circundam.
Não me foi dada a opção de partir
antes dos infortúnios.
Prossigo com a bagagem pesada,
repleta de cadernos
os mais diversos em tamanhos e cores.
E milhares de pedaços de papel, onde fiz anotações.

Partam os meus amores todos,
esposando as mais venturosas.
Desgarrem-se os meus filhos
sem entender o porquê de minha missão
e nem a substância do peso dessa bagagem.
Sucumbam os meus entes queridos
e falte-lhes o caráter,
perdendo-se para sempre
o sangue que tenho por herança.
Nada posso fazer.

Venha a morte em suas variantes:
guerras, doenças, vingança,
fatalidade, coração partido.
Mas não a minha,
que a missão é presenciar os acontecimentos.

Sou a que fecha a porta, a que apaga as luzes
A quem é confiada a chave do recinto das almas.
A quem cabe o ofício de sacudir a poeira
e retirar as teias de aranha, de tempos em tempos,
daquele cômodo mal iluminado e sem visitas,
que conheço bem o caminho.
Limpando, se garante que prossiga a vida.

Sei que só vou ao final.
Verei findar a natureza e as espécies mais belas
secarem os rios, murcharem as flores,
desistirem de nós os botos e as araras azuis.
Desaparecerão sob minha virgília as civilizações
e as obras de arte ainda anônimas.
Perder-se-ão as fórmulas dos cientistas,
ainda em estudo,
sem que chegassem a seu real ministério.
Sucumbirão com suas criadoras,
as receitas seculares das velhas quituteiras.
E perecerão, por ignorância dos guardiões,
os inéditos cadernos de rascunhos dos poetas...

Visões do meu inferno pessoal.
Nada posso fazer para impedir
a sucessão de eventos que a vida me resguarda.
A mim, não foi dado o direito de desistir.
Meu lugar é no meio do caminho
Vendo a vida passar
sem que possa fazer parte dela
carecendo, apenas,
que a descreva com paixão, fidelidade
e no mais das vezes uma certa melancolia.

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